6.8.04

Sintaxe

Uma das minhas sub-profissões é ser assistente de artista. Sempre pensei que, por os artistas brasileiros serem meio pobres, ser assistente de artista é coisa de artista americano que é financiado pelo Estado.

Fui parar logo num bico com um artista ex-guerrilheiro pós-acadêmico que queria mais era ser um heremita na montanha, como um Cézanne no fim da vida, pintando a mesma montanha por anos a fio e revolucionando a arte com alguns poucos textos decisivos. Este quase-heremita tem um outro assistente que é marxista e militante pelo PSTU. E eu ali, mulher e neo-libertária social-democrata feminista sueca, tentando entender porque um foi à guerrilha durante a ditadura (e preso, torturado) e porque o outro milita na extrema esquerda nos anos 2000 em plena era Lula, e como isso converge na arte de ambos. E como as minhas crenças não convergem na minha própria arte.

O confronto político é inevitável, porque estes 2 outros artistas (o velho e o novo) aliam a política à própria vida e por consequencia lógica, à própria arte. Enquanto eu fico nos meus questionamentos pessoais desenhando freneticamente no meu Book of Hours (sketchbook) como uma adolescente escreve na sua agenda, o artista maduro fica relembrando os fatos que o levaram a ser um combatente e uma vítima do autoritarismo e o artista novo alimenta um desejo insaciável de enxergar o mundo por um prisma mais igualitário.

Eu fico calada diante dessas conversas, espremida num canto, remoendo minha falta de crença na ordem do mundo e em como, efetivamente, só participo para alimentar o capitalismo e a cultura de consumo no mundo, sendo eu uma executiva mercenária e perversa (uma das minhas múltiplas personalidades/bicos) com uma educação artística de elite, mas tentando transcender isso a todo custo com minha arte, ou através do "ser" artista, mas não sabendo exatamente como. O que dizer? Como dizê-lo? Como enxergar as estruturas invisíveis no meio de tanta informação e como subverter seus significados? O que selecionar? O que defender/rejeitar?

Numa das inúmeras conversas dentro da pequena cobertura que abriga o atelier do quase-heremita, tornei isso público aos outros 2, e a resposta do mestre foi decisiva. "O seu único compromisso e engajamento deve ser com sua própria sintaxe e com a crença no seu próprio trabalho. Você é quem decide se é artista ou não. Você é quem estabelece os rumos para sua arte. O sistema não vai legitimar nada se você não tiver obsessão pelo que acredita." Vindo de um ex-guerrilheiro com uma bala ainda alojada na cabeça, isso é uma lição e tanto.

Decidir ser artista, uma profissional da transgressão, em um tempo em que o mercado e a tecnologia definem o rumo das pessoas e marginalizam todo o resto e põem à margem tudo o que não gera lucro. Isto em si já constitui um ato político, diz ele.

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