O leitor Marcelo Barros postou um comentário no último post com perguntas muito pertinentes:
1. Você não acha que a arte pode ter códigos baixos (para ser apreciada por pessoas comuns) e códigos altos (que serão apreciados por pessoas com conhecimentos mais profundos de arte)? Arte, pra ser boa, precisa ser hermética?
Isso é o que o Clement Greenberg dizia. Ele teorizou que uma obra de arte tem vários níveis de percepção, a primeira impressão é a da surpresa onde o gosto do espectador é o que define se ele vai continuar decifrando a obra ou não. Se passar pela barreira do gosto, o segundo nível de percepção é o da projeção, ou seja, o espectador projeta na obra algo que lhe é familiar porque isso auxilia na compreensão do que está vendo, ou sentindo, e por isso sente empatia pela obra. Depois, os graus mais abaixo são os de identificação cultural, histórica, etc., que é o grau onde os especialistas atuam. Um especialista vai invariavelmente colocar o trabalho dentro de um contexto cultural e histórico e daí avaliar se a obra tem maior ou menor relevância dentro do contexto da própria arte, e depois para o mundo em geral.
Isso é o que Greenberg diz, a grosso modo. Camadas de significado para cada tipo de público.
Marcelo, eu acho perfeitamente possível uma obra se comunicar com um público especializado ou leigo. Só que não sei até que ponto um artista busca essa comunicação tão estreita com o público. O que eu vejo geralmente é a necessidade do artista em agradar os críticos e curadores, figuras que contêm uma vasta informação e acesso sobre as "tendências" da arte contemporânea. Para um artista jovem, ser contemplado para expor numa grande exposição é maravilhoso, porque a carreira de um artista se faz através da visibilidade da obra, e quanto mais visibilidade mais chances de vender, quanto mais vende, mais possível se torna a vida de um artista sem ter que recorrer aos "day jobs". Então, uma arte hermética pra crítico ver torna se arte "boa" só porque é reconhecida e legitimada pelo meio especializado.
Agora, isso não quer dizer que uma arte "boa" para crítico seja uma arte "boa" para o público-geral. O crítico/curador busca alguma coisa na obra que remeta a alguma questão da própria arte e que tenha relevância histórica e cultural, o público geralmente é bem menos exigente, quer mesmo é que a arte proporcione uma "good experience". O artista sempre oscila entre esses dois extremos, como fazer uma arte que seja uma "good experience" e que tenha ao mesmo tempo um significado maior do que a própria obra? Como conciliar em uma instalação, video, fotografia, pintura ou desenho, o significado pessoal, com o histórico, com o cultural, com o dito "fenomenológico"? Há obras que tocam em um desses aspectos, outras em outros. Mas em todos esses anos que estudei e olhei arte nunca ninguém me convenceu que arte tinha que ser hermética para ser boa. Existe arte hermética boa e ruim, como existe arte popular boa e ruim.
2. Retomando uma discussão que já rolou por aqui, transcrevo abaixo os comentários de alguns dos visitantes da 26ª Bienal de Artes de SP... Pessoas comuns que foram lá apreciar arte:
Obra: Vital Brasil.
Artista: Thiago Bortolozzo.
O que é: Uma estrutura de ripas de madeira, idêntica àquelas que os pedreiros usam em construções.
Comentário: "Será que isso é uma obra de arte ou a reforma do pavilhão? Tem muita coisa louca, fica difícil saber o que é instalação." (Teresa Brito, dona-de-casa)
Obra: The Field II
Artista: Ingrid Book e Carina Hedén
O que é: Pilhas de jornais com notícias do campo.
Comentário: "Para mim, é um monte de jornal empilhado, mas vai saber... Será que é arte ou pode pegar?" (Anderson Izidoro, caseiro)
Isso é arte?
Porque não seria?
Quer dizer, pra entender essa arte tem que ser especialista no assunto?
Não. Basta ter um pouco de senso de humor. O bom da arte contemporânea é que tem um pouco para todo mundo. É um exercício de tolerância.
Uma instalação é uma obra em aberto. Não é mais necessário uma definição de dicionário para pintura, escultura, desenho, etc. Tudo é possível, separadamente ou em conjunto. Mas concordo que a dona-de-casa possa ter se sentido perdida, ela obviamente não encontrou ali nada que pudesse reconhecer como "arte", não viu nada ilusório nem emoldurado. Acho que essa obra do Thiago fez com que ela avaliasse o que ela define como sendo arte, o que ela percebe como sendo arte. Esse é o mesmo questionamento que o própria artista se faz: o que é arte? o que pode ser arte? quais são os limites da arte? como posso transmitir, através da minha obra, uma nova definição ou possibilidade de arte?
Mas adorei o caseiro. Se fosse arte ele não poderia pegar no jornal? Só pelo fato desses jornais estarem expostos em um museu durante a bienal de arte já torna aquilo arte e dever ser elogiado, criticado, julgado como arte. Caso contrário, o que fariam esses jornais ali? Será que algum entregador da Folha de São Paulo resolveu dar uma soneca dentro do Ibirapuera durante o serviço? Arte contemporânea também é uma arte que pode não ter "cara" de arte, mas que, se estiver dentro de um espaço de arte, é arte e ponto final. Daí a proliferação de museus de arte contemporânea em qualquer cidadezinha de terceira mundo afora. O museu não é mais só para a arte antiga dos mortos, é também um espaço que legitima qualquer criação atual abrigada por ela. Agora, se pode pegar o jornal ou não é uma decisão dos artistas. Em alguns casos poderia, porque não?
Não é possível uma arte que se comunique tanto com uma dona-de-casa e com um caseiro num nível e com um professor de história da arte em outro nível?
Sim. Mas conseguir agradar a pluralidade dos espectadores da bienal é uma tarefa dantesca. O que um artista deve conseguir atingir em ambos públicos é fazer o espectador ver a arte sob uma nova ótica, uma nova possibilidade. E quando a arte é boa, o caseiro e o curadro vêem da mesma forma.
18.10.04
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ReplyDeleteMarcelo Barros
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