23.1.06

Assim eh se lhe parece

Para mim, artistas existem de 3 maneiras:

1) São uns chatos reacionários, tradicionalistas, que se crêem poetas, mas acabam fazendo pinturas enfadonhas que merecem mofar acima de sofás de casas de madame, ou preferivelmente manter a arte como hobby;

2) São metidos a moderninhos, o que encobre a sua falta de originalidade, e seguem fazendo cópias ruins do que já existe com sucesso morno, condição da maioria dos artistas, infelizmente;

3) São bem-humorados e irreverentes, muito inteligentes, imprevisíveis e querem mesmo é dar uma banana para o sistema de arte, ato em que desbancam e ofuscam os dois tipos citados acima e todo o sistema que os favorece, inclusive imprensa, galerias, etc. - o que chamam de "sistema de arte".

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Hoje, para minha grande surpresa, finalmente o Segundo Caderno do jornal O Globo publicou, depois de meses, uma matéria interessante que fugia ao lugar-comum a que a editoria cultural do jornal em geral se submete de publicar press release de músico ou ator da globo. Não, pelo contrário, saiu a matéria sobre uma exposição lá de Fortaleza, cidade de país longínquo onde os cariocas mal sabem que existe vida cultural.

"Um célebre e renomado artista japonês, Souzousareta Geijutsuka, viria ao país pela quarta vez para abrir, no dia 10 deste mês, sua exposição “Geijitsu kakuu”, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Fortaleza."...

Achei estranho. Um artista japonês em Fortaleza? célebre e renomado? Olha que eu leio ArtForum e nunca ouvi falar. Mas os nomes japoneses são impossíveis de memorizar então deve ter passado reto..."SOUZOUsareta"...e pensei...tem Souza no Japão? Nome esquito esse, grafia esquisita...achei esquisitão.

Mas, ao ler o artigo, comecei a rir muito. É que o artista em questão é completamente fake, inventado, imaginado por outro artista de nome esquisito, porém menos duvidoso, chamado Yuri Firmeza, de 23 anos, de Fortaleza.

Este artista, que eu já conhecia por ele ter participado no ciclo de exposições "Nano-exposição" que organizo junto ao meu coletivo de arte Grupo DOC no Rio, realmente me surpreendeu pela precisão e pela atenção aos detalhes em torno da exposição do japonês . O cara inventou tudo de cabo a rabo: o nome do artista, o currículo, pegou as imagens de divulgação do artista de qualquer site da Internet, fez parceria com a namorada jornalista para lançar um release na imprensa, e convidou uma jovem curadora para escrever um texto crítico para a obra imperdível e incrível do renomado, porém recluso, (não)-artista japonês.

Yuri foi esperto. Manteve o bico calado antes da abertura da exposição no dia 10 de janeiro de 2006, igualmente fictícia, e deixou que tudo se desenrolasse normalmente, permitindo que as pessoas chegassem às suas próprias conclusões quando vissem a exposição. Mas não havia o que olhar. Antes disso, no entanto, a informação já havia ocupado toda a imprensa cultural local e foi ali reproduzida na manhã deste mesmo dia de vernissage.

O artigo de Dawlton Moura (nome igualmente estranho) "SOUZOUSARETA: Arte, natureza e tecnologia" já havia sido publicado no Diário do Nordeste, assim como o artigo do Jornal O Povo louvaram o trabalho do artista japonês, aparentemente fazendo a divulgação nada mais do que correta de qualquer evento cultural. A coisa funciona mais ou menos assim: uma vez que o release é enviado, o jornalista percebe a pertinência, talvez entre em contato com o artista por email ou telefone, escreve a matéria e no final do dia vai pro bar tomar um chopp. Done deal.

O vernissage transcorreu e todos aqueles que compareceram ao coquetel de abertura se perguntaram, onde está a exposição? Havia apenas um aviso na parede dizia "exposição em desmontagem", e, mais adiante, estão expostos e-mails trocados entre o artista e o sociológico Tiago Themudo, com quem Yuri dialogou na concepção do projeto, e um texto de apresentação (em português e inglês) de Souzousareta ao público, escrito pelo diretor-técnico do MACCE, Ricardo Resende. Quer dizer: a intenção da exposição é criar uma ficção, e o que se revela nas paredes do museu são o "making-of" ou os "dvd extras" da expo, já que o artista escolheu exibir, para apreciação local, a gênese do trabalho: ele escreve a Thiago: "Olha aí, Tiago, e diz o que acha: A ocupação da sala será da seguinte forma: irei inventar um artista, biografia, currículo, obras. tudo ficção."

O artista usou a sala de exposições do museu como arquivo do projeto, enquanto o suporte da obra era...a própria notícia dela.

No dia seguinte, a imprensa local reagiu furiosa chamando a farsa do artista Yuri Firmeza (nome estranho) de "molecagem", "pegadinha infeliz" e etcetera e começaram a botar a credibilidade do Centro Dragão do Mar em xeque dizendo coisas do tipo onde-já-se-viu-uma-instituição-tão-prestigiosa-dar-abrigo-a-uma-molecagem-de-um-garoto-tão-irresponsável. A direção do lugar topou a parada e bancou a idéia até o final e só teria sua credibilidade abalada se o artista de fato fosse irresponsável e aparecesse de mãos abanando no dia do vernissage. E o que aconteceu foi justamente o contrário: excesso de planejamento.

A piada era com a própria imprensa e só os jornalistas perceberam isso tarde. Em um mundo regido por informações, o jornal, ou este blog, ou qualquer difusor de informações inventa o que bem entende, sabendo que é a publicação do fato é que torna o fato verdadeiro, e não necessariamente a ocorrência do fato em si.

Segundo a matéria de Regina Ribeiro "Arte no Jornalismo", originalmente publicada no Jornal O Povo, caderno Vida & Arte, no dia 12/01/, 2006, (...)"A questão é que Souzousareta só existe a partir da informação publicada. É uma invenção. Uma fábula.(Portanto, arte.) Não se materializa em torno de uma alma pensante, mas existe como discurso. É real enquanto informação.

Mesmo diante da possibilidade da infinitude da interpretação de uma obra de arte que se propõe "aberta" e que trafega no espaço singular do imprevisível e das descobertas, o jornalismo é convidado a participar, quando ele é suporte dessa arte. Pronto. O bosque está pronto para ser explorado.

E aqui estão alguns vales e muitos atalhos. Os recursos e sistemas da produção da notícia deixam o jornalismo vulnerável a que tipos de armadilhas ? Criamos ou fazemos parte de um exército de crédulos seguindo discursos pré-fabricados com interesses anteriores definidos sem nenhuma reflexão? Por que nos dobramos tão facilmente ao que é estrangeiro? Por que referendemos com tantos adjetivos (bons e maus) o que não conhecemos? Será que são todas essas questões que arrastam o jornalismo para o mero entretenimento? (Pelo menos lá não há motivos para indignações).

E a verdade - motivo da revolta em torno do japonês e a forma como ele se fez criar a partir da mídia local- se apequena diante do volume de outras "criações" políticas, bélicas, científicas que o jornalismo contemporâneo tem ajudado a tornar reais. Sem dúvida, Souzousareta existe."


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O artista poderia afirmar que o fato de eu estar escrevendo um post sobre o Souzousareta faria parte do suporte da obra, que não se conclui em um espaço físico, mas permanece existente enquanto a notícia for viva. Então aqui vai: Souzousareta existe, é um artista internacional de grande nome e influência, e recomendo que todos vão apreciar seus trabalhos sobre a linha tênue entre natureza e tecnologia no Centro Dragão do Mar em Fortaleza.

Pois bem, Yuri, long live Souzousareta.

Veja o Clipping do artista.

Conheça mais sobre o artista aqui e aqui.