21.7.09

Candelária - 16 anos depois

Artigo escrito pela Yvonne Bezerra de Mello, minha mãe, coordenadora do Projeto Uerê. Ela cuidava do grupo de meninos de rua na Candelária, quando aconteceu a chacina em 20 de julho de 1993. Quando falo 'cuidar', não quero dizer 'fazer caridade'. O trabalho dela era puramente pedagógico, ensinava as crianças a ler e escrever na própria rua, e é claro que o ensino não sendo só a parte da 'aula', ela acabou descobrindo a razão pela qual eles estavam na rua, e tomou para si a causa de defesa dos direitos da criança e adolescente nas ruas, e por conseguinte, no Brasil.

Dezesseis anos depois, o projeto que ela criou e dirige, Projeto Uerê, dá ensino supra-escolar para 500 crianças na Favela da Maré, e o método de ensino criado por ela, a metodologia Uerê-Mello, já está sendo implementada pelo Estado do Rio de Janeiro como pedagogia para alunos que estudam em zonas de risco. A metodologia é focada em crianças e adolescentes que demonstram problemas de aprendizado em zonas de risco, traumas decorrentes da exposição à violência. A metodologia é inteiramente voltada para a recuperação da habilidade de aprender e busca reduzir o abismo intelectual que separa as classes sociais no Brasil. Se a mudança tiver que começar por algum lugar, que comece pelo intelecto - e depois será mais fácil derrubar as outras barreiras que um jovem pobre tem de enfrentar na sociedade brasileira.

O artigo abaixo foi enviado para a seção de opinião de O Globo, a ser publicado em breve.

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21 de julho de 2009

Não aprendemos nada!

Yvonne Bezerra de Mello, Coordenadora do Projeto Uerê

Há dezesseis anos atrás o mundo se estarreceu diante do assassinato de crianças e adolescentes no centro da cidade do Rio de Janeiro. O Brasil, naquela ocasião, bem que tentou explicar porque o Estatuto da Criança e do Adolescente não foi implementado de fato, porque crianças são abandonadas e negligenciadas, porque a corrupção endêmica e epidêmica continuava nas suas instituições e porque não se investia corretamente em educação e saúde. Discutiu-se muito o futuro das novas gerações e de uma nova consciência cívica, um novo procedimento responsável e a restauração ética dos poderes constituídos. Pensei que finalmente a dívida social e moral do Brasil com seus cidadãos pudesse ser resgatada. Pensei que finalmente a discussão em torno do assassinato dos meninos nos levasse a aprimorar um processo de democracia e de liberdade consciente de todos os brasileiros frente à aquele trágico acontecimento.

Pensei e desejei que assim fosse. Não foi. Apagados os holofotes da mídia nacional e internacional, esfriados os acalorados debates políticos com explicações vazias sobre o não cumprimento das leis, a vida da cidade voltou ao normal com suas mazelas, com a continuidade de hordas de crianças nas ruas, com a violência aumentando, com os cidadãos cada vez mais sitiados e amedrontados. Fico pensando e tentando achar uma explicação que justifique a razão desse povo ordeiro organizado e trabalhador não sair às ruas e exigir uma mudança na estrutura da sociedade brasileira.

Os gritos das organizações em defesa dos direitos do homem parecem ladainhas sem fim, gente percorrendo os mesmos caminhos nas passeatas em prol da vida, sempre as mesmas ao longo dos anos, os mesmos cartazes, as mesmas frases. Eu tenho a sensação de que paramos no espaço, perdidos nos traumas do cotidiano que nos fazem perder a noção do tempo. Só acordamos dessa letargia quando um cidadão brasileiro perde a sua vida com as balas perdidas, com os autos de resistência sem explicação lógica, com a dor das famílias atônitas com a violência gratuita fruto da ineficácia das políticas públicas.

Para mim a morte daquelas crianças não foi em vão. Na noite da chacina, com todas elas à minha volta tomei a decisão de dedicar meus dias à procura de soluções para a infância brasileira. E assim nasceu o Projeto Uerê e sua metodologia, a Uerê-Mello, especializada em crianças com problemas de aprendizado devido a violência. Eu abracei, naquela praça ao lado dos cadáveres, a causa de transformar esses pequenos seres com tantos problemas em grandes brasileiros eliminando as barreiras intelectuais que os separam das classes mais favorecidas.

O Brasil avançou um pouco na erradicação da pobreza porém continua engatinhando na verdadeira igualdade entre homens que é a qualidade da informação igual para todos. É aí que reside a nossa maior pobreza, é aí onde as nossas diferenças são mais gritantes, é aí onde reside o afunilamento para o nosso desenvolvimento atual e no futuro. As crianças nas ruas e aquelas vivendo nos guetos das cidades são o lado ainda obscuro da nossa sociedade. Os toleramos mas ainda não os queremos ver. É o lado doente do Brasil, doente de fato com uma população infantil e juvenil desenvolvendo doenças psicossomáticas importantes que se traduzem em problemas de aprendizado e pobre desempenho escolar que vão afetar toda a sua futura vida de trabalho.

Dezesseis anos se passaram desde a Chacina da Candelária e aquela cena dos meninos mortos em frente à Igreja ainda não se apagou da minha memória. Ainda não perdi totalmente a esperança de ver um país se educando, todos iguais, com mesmas oportunidades e com a mesma informação. Sem esse ajuste estrutural não teremos desenvolvimento social de verdade.

Mas como não aprendemos nada, mais uma vez como todos os anos faremos as mesmas coisas, reivindicaremos as mesmas políticas públicas que não saem das boas intenções, faremos as mesmas reflexões rápidas depois de ouvir a mídia do dia achando que isso basta para se ter uma sociedade mais justa. Não basta!

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