O sentido das redes para a vida hoje permite que a medicina estenda a vida que um corpo vegetativo através de máquinas e que um cadáver seja preservado em uma técnica contemporânea de embalsamento como a plastinação.
Stelarc é um artista que acredita e demonstra que as fronteiras entre homens e máquinas, arte e tecnologia, são membranas permeáveis. Reconhecido há décadas como um artista que leva a questão do pós-humano e a “terceirização” dos sentidos através da tecnologia, a sua obra gira em torno algo mais do que um uso solipsista das técnicas disponíveis.
Stelarc vê o corpo humano como uma arquitetura evolutiva, algo em fluxo e em permanente transmutação. As suas obras e máquinas-prótese põem em evidência a fragilidade do corpo humano e seus mecanismos de controle inerentes. O corpo é uma máquina que opera principalmente por movimentos espasmódicos involuntários, temperados pelo hábito de manter a máquina (ou organismo) girando – o corpo é um zumbi, puro autômato. Do ponto de vista das máquinas do desejo de Deleuze e Guattari, Stelarc se posiciona exatamente como tal: o seu corpo é uma máquina de produção.
No desejo de querer controlar a produção involuntária que é seu corpo, ele usa a tecnologia para tornar visível as possibilidades de (des)controle do seu corpo. Ao contrário da artista francesa Orlan que também usa o corpo como suporte para sua transformação/deformação estética, Stelarc não pretende modificar, inicialmente, a sua “arquitetura evolutiva”, mas sim potencializar e estender os sentidos através da mediação mecânica e eletrônica. Nesse sentido, ele está apenas continuando o que homem sempre fez, só que com os meios de hoje. Ele conclui que o ser humano sempre foi cyborg: desde a primeira pedra atirada para matar um coelho na boca da caverna o homem sempre criou instrumentos de projeção para alcançar além de seu próprio corpo.
Talvez a natureza não tenha sido suficiente conosco. Em “The Naked Ape”, Desmond Morris ressalta que nós, o macaco pelado, somos um acidente evolutivo que deu certo, o glitch na máquina de produção do gênero Homo que foi desembocar no Sapiens. Toda a nossa genialidade e diferença em relação ás outras espécies é decorrente dessa falha evolutiva. Só nos beneficiamos em duas questões: no cérebro mais capaz e no polegar opositor – exatamente as duas faculdades físicas que nos permite criar técnicas e fabricar objetos para suplementar a nossa falha em quase todo o resto. A nossa nudez nos obriga a nos vestir para nos proteger do frio ou calor, daí a invenção da costura e dos tecidos; precisamos construir abrigos contra a incerteza do clima, daí a arquitetura; a vulnerabilidade a doenças e a necessidade de combater a morte gerou a medicina; a necessidade de comunicação para transmitir códigos de sobrevivência gerou a linguagem e os sistemas de pensamento.
Jared Diamond em “The Third Chimpanzee” levantou, talvez, uma questão ainda mais fundamental para a sobrevivência da espécie humana diante de sua fraqueza biológica: o
estrus (sio) feminino escondido e o coito privado. Assim foi inventado o amor, ou o desejo, ou a pura capacidade de produção. O macho que não consegue mais “ver” o sio da fêmea tem que adivinhar o seu período fértil para saber quando reproduzir. O coito privado cria exclusividades dentro do conjunto social e estimula a imaginação erótica acerca do “outro”, por extenso a força propulsora de tudo mais. Nesse complexo jogo de adivinhações e cortejamento, criaram-se códigos e comportamentos sociais que justificam a necessidade de estender-se além de si próprio, em uma espécie de darwinismo erótico em que ganha quem exibe desejo maior de sobreviver. Esse “desejo”, quando visto além da sexualidade, pode explicar
Segundo Stelarc, a tecnologia vem sublinhar esse desejo natural humano de ser maior do que si, de ser uma máquina de longo alcance. Quando ele convida usuários em 6 cidades a controlarem seus movimentos musculares á distância, músculos que são involuntariamente convidados a se movimentarem através de correntes elétricas no seu corpo, é criado um espaço de intimidade corporal entre aqueles que movimentam esse fantoche cyborg e os seus manipuladores por intermédio da rede. Nesse contato entre corpo e máquina, o clique do mouseem Berlim se trans-substancia em corrente elétrica que movimenta um músculo em Nova York. O homem, nesse caso o artista, relega o movimento do corpo à rede. O que vemos, na performance de Stelarc, é uma coreografia desses espasmos-clique que forma uma imagem da pulsação da rede através da pulsação do corpo. No caso de Stelarc o corpo é suporte e a rede é vetor.
A metáfora primata se sustenta no seguinte fato sobre essa instalação específica. Nela, os cliques na rede ativavam uma corrente elétrica que entrava pelo braço esquerdo e saía pelo direito, fazneod com que os músculso se contraíssem por condução elétrica da própria rede nervosa do corpo. Mas não pára por aí, não se trata apenas de uma dance macabre. A corrente que sai do braço direito, por sua vez, ativa uma terceira mão mecâmica acoplada a esse braço que reage a esse estímulo elétrico. Visualmente, ela é tão grande que parece a mão de um primata. Essa mão mecânica também não serve para muita coisa no mundo dos humanos pois não tem polegar opositor. A tecnologia, para Stelarc,, simboliza um eterno retorno ás ironias evolutivas do homem. Seus exo-esqueletos terminam transformando o corpo humano em si próprio, metáfora de si, uma máquina de desejo cujo objetivo é a própria produção de seus movimentos involuntários.
O espaço de intimidade, e, por extensão, do afeto, é criado na instalação de Stelarc subseqüente. Utilizando o mesmo partido de movimentação involuntária á distância e ativação do terceiro braço primal, ele acrescenta um novo elemento de proximidade: agora não basta que a sua rede neural física corresponda á rede neural telecomunicativa. Stelarc, o fantoche, quer conhecer seu
puppeteer. Com um headset que transmite por webcam a imagem de quem o está manipulando, o fantoche pode começar a entender quem e o que o move, e, mais importante, porque o move. Uma espécie de boneca voodoo humana que quer conhecer seu karma.
O artista quer saber o que motiva seu corpo a se movimentar se ele não posso fazê-lo, quer saber porque Deus, o
master puppeteer está fazendo isso e porque seu livre arbítrio o impede de interferir na Vontade Divina. O resultado é um espaço de intimidade comprimido no tempo e no espaço, uma imagem da rede pelo corpo e também pelo olhar. É a rede o espaço da performance, e não sómente o corpo. A performance na rede é a imagem pretendida. A
rede é o vetor que envia a pulsação via as sinapses neurais da rede, enviando os impulsos da mesma forma, mas a ela se acrescenta o elemento cognitivo do conhecimento do "outro" que move a ação.
Nas obras mais recentes, o fenômeno de proximidade e da intimidade é levado ao extremo. Stelarc recentemente implantou um molde natural da própria orelha (um clone criado em laborátorio a partir da cultivação das células da própria orelha) no ante-braço esquerdo. Acoplada a essa orelha está um receptor Bluetooth, tecnologia que permite atender a chamadas telefônicas em um raio de até 10 metros do aparelho celular. A orelha clonada ouve ligações a partir de uma extensão auditiva tecnológica que integra o espaço neurológico e sensorial da rede: é um sistema integrado de telefonia biológica. O artista “ouve” pelo braço, pela sua carne fractal. Durante a palestra em que foi possível testemunhar a presença da orelha, saquei o meu telefone celular que tem Bluetooth e tentei mapear o seu dispositivo para poder fazer uma ligação “Fractal flesh” é o termo de Stelarc para designar órgãos remotos tecnologicamente conectados ao corpo, estendidos ou aumentados pela tecnologia. “O território do pós-humano podem muito bem não residir no campo dos corpos ou das máquinas mas no campo dos fantasmas – entidades inteligentes, autônomas e operacionais
sustained na rede. O corpo é o lugar do ponderável e do mortal. Um avatar não tem órgãos.” Na concepção deleuziana, o avatar é o próprio corpo-sem-órgãos.
Stelarc propões um jogo de reversões que incorpora, de certa forma, as fantasias figurativas Dadá. A orelha implantada lembra as alegorias macabras de Dali, com orelhas penduradas em galhos como órgãos-sem-corpo, em uma tentativa de isolar o espaço auditivo de um corpo consciente inserido na paisagem.