9.12.06

Do Real ao Virtual

No final dos anos 80 até o início dos anos 90, curadores de arte e fotografia e teóricos começaram a analisar o significado da tecnologia da imagem digital em relação ao status e á prática fotográfica. A facilidade e rapidez com que tecnologias da imagem digital se tornaram disponíveis na época para um público profissional e amador permitiu o surgimento da idéia de que essa transformação significava uma mudança paradigmática. A tecnologia digital parece abalar definitivamente a suposta credibilidade da imagem fotográfica como documento e gerou tanto uma nova gama de soluções, quanto de problemas, como a transmissão e o armazenamento de imagens, hoje produzidas de forma exponencial.

Com o crescimento e a ubiqüidade do uso da computação móvel e da Internet, esse fenômeno se acentuou ainda mais até o ponto em que hoje evidenciamos um mundo gerido pela informação visual gerada por milhares de câmeras digitais disparando cliques e publicando imagens para acesso do público a todos os momentos, em qualquer lugar do mundo. Se por um lado, a Internet permitiu que o acesso á recepção e transmissão de informação saísse da mão de ‘experts’ e residisse na mão de qualquer pessoa, este fenômeno também permite que existam desvios de percepção sobre o que realmente é um fato ou mera simulação. A opacidade da questão da legitimidade em relação ás imagens foto-jornalísticas, por exemplo, gira em torno de questões de quem seria o “dono do fato”, já que a notícia há muito já não é domínio exclusivo das agências de notícias e de seus enviados especiais.

Se a questão digital permite que mentiras se tornem verdades sem meios de provação concreta, o inverso também é verdade. Há anos jornalistas vêm criando blogs para escreverem tudo o que o jornal não lhes permite publicar. Blogs tornaram-se, na realidade, muito mais autênticos do que os jornais e sua parcialidade, pois o blogueiro não responde a ninguém a não ser a si próprio. Blogs, por exemplo, também dão vazão à criação de identidades fictícias, alter-egos que escrevem através de pessoas e que criam comunidades inteiras de pessoas “reais” em torno de um autor “fake” e talvez em torno de eventos e notícias falsas. Talvez diante de toda a falsidade de personas e eventos, esta seja uma verdade em si, se for consistente.
Estes desdobramentos desviantes do acesso à informação são indícios de uma histeria coletiva, ao mesmo tempo em que talvez a Internet seja um dos lugares em que pessoas não precisem representar os papéis de acordo com os interesses de suas organizações. A maleabilidade do meio parece se prestar tanto a teorias conspiratórias e apocalípticas quanto a uma utopia que o mundo real mais opaco não permite. No final, é uma questão de percepção e saber como navegar pelo labirinto da informação guiados por uma intuição do que é legítimo ou não, pois em um universo paralelo sem um pai, prevalece a anarquia.

O que acontece com os blogs “extra-oficiais” também ocorre no universo do arquivo de imagens e filmes. Sites como Flickr e Youtube são verdadeiros repositórios de uma nova crônica humana que acontece fora das convenções dos gêneros “filme” ou “fotografia”. Quando analisados indivualmente, estes filmes e fotografias são em geral muito ruins e descartáveis, sem mérito de serem gravados ou vistos mais de uma vez. No entanto, o que ocorre não é um salto de qualidade mas uma enorme quantidade de informações na maioria das vezes inúteis. Em uma palestra recente com fotógrafos do Rio de Janeiro, fotógrafos “analógicos” se vêem um pouco impotentes e desgostosos com a falta de qualidade de imagem que a Internet permite publicar e com a falta de algo ou alguém que exerça um mínimo juízo estético sobre o que é veiculado. Essa falta de ‘legitimidade’ aparente desilusiona o fotógrafo “tradicional” e a sua busca pela imagem perfeita, única, soberana, aquela imagem que condensará uma verdade humana ou da imagem em um frame. A quantidade de imagens ruins os assusta. Eu concordo.

Por essa mesma razão, não vale a pena perder tempo na análise do valor qualitativo de uma imagem única, como se ela fosse conter alguma verdade ou mesmo um ela com uma realidade, ou que ela tenha potencial de se tornar um ícone ou símbolo. A maioria das imagens postadas em fotologs ou Flickr não possui qualquer valor artístico ou de conhecimento, mas o seu conjunto e a compulsividade com que elas são inseridas na Internet sim. Logo, a diferença entre a fotografia analógica e digital reside além do debate sobre que tipo de imagem é possível produzir com determinados aparelhos. É a diferença dos fluxos de um tipo de imagem e de outra que cria esse abismo ontológico em torno da percepção da imagem e das narrativas, contextos e subjetividade de quem, ou vários quems, as produz.

A diferença entre a imagem analógica e digital marca o debate iniciado por Marshall McLuhan e Vilém Flusser, que na segunda metade do século XX criaram as bases para a história e teoria das mídias. McLuhan afirma que a fotografia foi decisiva na ruptura entre a mecanização industrial e a “época gráfica do homem eletrônico”. Já Flusser determina que a imagem técnica constitui um tipo de meio distinto que contém um significado diferente das imagens tradicionais mesmo que sejam reminiscentes destas mesmas imagens, o que indica que a fotografia leva a uma revolução cultural. Ambos vêem a era do computador como uma conseqüência ou continuidade dessa revolução fotográfica.