2.11.04

A Vila

Vi A Vila de Shyamalan-banlangandan e odiei o filme, mas todo à minha volta adorou. Por já conhecer o diretor, dava pra sacar que o plot ia ter uma virada no final. Mas não me surpreendi tanto assim. Fui pegando as pistas ao longo do filme, coisas sutis, mínimas, talvez coisas que tenha pego só porque já trabalhei em cinema na parte de cenografia, o que me faz perceber muito atentamente todos os elementos de um cenário.

No começo do filme, já tinha achado estranhíssimo que as tais criaturas pudessem vestir capas idênticas às do povo da vila e fiquei pensando como é que criaturas com unhas grandes poderiam jamais ter a destreza de costurar algo tão bem. Não só de ter costurado, mas como criaturas não-humanóides podem mesmo andar vestidas. Depois a tinta com que pintaram as portas das casas, de um vermelho industrial, já que o sangue fica marrom quando seco, e nada vermelho. O último detalhe que para mim foi mortal foi a casa de vidro onde ocorreu o casamento da filha de Walker. Como é que, numa sociedade agrária e estilo século 18, poderiam ser fabricadas enormes lâminas de vidro sobre estrutura metálica, uma verdadeira estufa moderna apenas possível depois da revolução industrial? Foi aí que o filme morreu pra mim, dali em diante, virou uma mistura de senhor dos anéis com o Bigfoot e contei os minutos até terminar o filme enquanto a platéia inteira saía maravilhada da sala, sem dúvida achando que esse é o melhor filme jamais feito, e que o shyamalamam é um gênio incomparável.

Mas mesmo assim, continuo pensando no raio do filme. Por mais tosco que seja, tem um comentário americano forte. Descontando o moralismo infernal do tipo "o dinheiro é o grande vilão" (bocejos), tem a questão da paranóia e da criação do mito como auto-preservação que é importante. E é exatamente esse tipo de criação do medo que é a grande questão da eleição americana hoje.

As pistas das mentiras do Bush estão aí para quem quiser ver, mas quem quiser acreditar no mito do sonho americano vai ter todos os argumentos a favor. Se a mentira é só o que você conhece, então ela passa a ser verdade. Pode-se lembrar também a analogia da caverna de Platão, em que os entes acorrentados que só conhecem o mundo através das sombras projetadas no fundo da caverna.

O que me deprime é que a estabilidade mundial dependa exclusivamente do que acontecerá hoje. Nunca fomos tão bem informados, ao contrário do povo da Vila, e nunca fomos tão manipulados por uma força hegemônica (tal qual A Vila). Quais seriam os nossos instrumentos de resistência?

Os revolucionários de '68 desconstruiram o mundo em busca de um novo sentido, mas o que acontece quase 40 anos depois, é que precisamos novamente de uma revolução ideológica e, no entanto, não temos lastro nenhum seja teórico ou prático porque já está tudo fragmentado.

Seria um "retorno à ordem" a única solução viável? Ou seria esse desejo de ordem uma regressão a um autoritarismo datado? Quem seria sacrificado para manter o segredo de A Vila? Será que é preciso manter o mito do medo para assegurar a paz, ou seja, encobrir a verdade por uma causa coletiva, ou desvelar tudo e começar de novo?

A sorte está lançada.

2 comments:

  1. Quem fomenta medos tem tbm tem medos; mas estes nunca são os mesmos q aqueles.

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  2. Anonymous7:57 pm

    A volta ao conservadorismo é gesto natural, auto-preservação da humanidade. O filme é bem interessante neste ponto, criar mitos, manipular a realidade, tem data de validade. O problema é que a realidade também parece ter, muitas vezes os mitos imperam.
    Reginaldo Siqueira http://www.singrando.org
    (meu novo endereço, atualiza teu link! Abraço!)

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