28.5.04

É tudo farinha do mesmo saco (?)

Uma das coisas que me irritam em algumas curadorias internacionais é que sempre existe aquele rótulo "Latin-American Art". Isso basicamente comprime um continente inteiro, da Baja California à Patagônia, sob um único rótulo, como se fôssemos uma massa uniforme de artistas produzindo arte regional, tudo farinha de milho do mesmo saco. ou de mandioca. sei lá.

Como brasileira tenho tanto em comum com um boliviano quanto com um malaio. Só porque vivemos na mesma placa tectônica (o boliviano e eu) não significa que vemos o mundo da mesma forma. Mas para um norte-americano, qual a diferença faz o Brasil ou a Bolívia, é tudo com B mesmo e lá não falam inglês direito, fora isso são pobres e têm governos instáveis.

Um livro de arte americano chamado ArtToday dividido em vários capítulos temáticos, começa por temas muito específicos como "New York Style", "California Painters", "Young British Sculpture", "Land Art", deixando as artes de "gueto" lá pro final, quase como uma curiosidade. Nesse balaio está a "Feminist Art", a "Minority Art", a "Native Art" e é claro a "Latin American Art". Quer dizer, quando o assunto é primeiro mundo é tudo detalhado, específico. Passou para debaixo do equador ou para as "minorias", começam as generalizações, como se fôssemos padronizados, sem identidade, produzindo uma única arte baseada nas nossas mazelas de opressão oriundas de ditaduras. "Ah esses latino-americanos com suas ditaduras não têm voz própria, só nós os nova-iorquinos fazemos algo de realmente novo." O que consta no texto do autor é o "surgimento" da arte não-ocidental e das minorias no panorama da arte mundial. Ele está se referindo especificamente ao sistema de arte global comandado por quem tem mais dinheiro.

Ainda existe quem pense assim. Mas graças ao deus da arte contemporânea, há cabeças mais modernas e abertas que pensam diferente. Na Documenta de Kassel, por exemplo, evento de arte que ocorre a cada 5 anos, eles tomam o maior cuidado para não rotular artistas de acordo com sua nacionalidade, mas com suas linguagens visuais, com a preocupação de obter coerência com o total da obra e assim refletir tendências das artes plásticas mundo afora. Alguém está em sintonia no hemisfério Norte, está comprovado, mas vale ressaltar que a curadoria da Documenta é mixta, e inclui latino-americanos, além do curador-geral ser indiano. Menos mal, mas é exceção. Só nos últimos 5 anos a arte contemporânea brasileira têm ganho representatividade nas galerias lá do Norte. Finalment reconheceram que há qualidade aqui, e muito mais frescor do que as questões enfadonhas e batidas da arte européia e americana. A revolução do olhar agora mora aqui.

Outro dia, também, recebi um comentário assim: "Isabel, a sua arte não é brasileira..." Fiquei perplexa diante desse comentário, ouvi calada, depois fiquei pensando. O que quer dizer "arte brasileira"? Não faz mais de 80 anos, o Brasil era uma sucursal dos cânones artísticos europeus. A arte dita "brasileira" era quase inteiramente produzida por europeus imigrados ou convidados em missões artísticas, emulando um estilo completamente continental, com pouca ou nenhuma influência da arte indígena, ou a preocupação com a criação da identidade artística local. Foi só em 22 que começaram a pipocar os movimentos antropofágicos, os Abaporus, as sinfonias de Villa-Lobos. Depois disso os concretos romperam com as referências tropicais, querendo dizer ao mundo, "nós aqui também pensamos intelectualmente e abstratamente a arte", depois os neo-concretos vieram suavizar essa posição. Depois, a influência da Pop Art americana influenciou a Nova Objetividade, a repressão fomentou uma vertente política forte, e com o estímulo da loucura toda das instalações e de grupos como Fluxus e das performances chegamos a uma arte verdadeiramente global, a nossa com tempero baiano.

Nasci em 1975, em plena era de arte conceitual e minimalista, da explosão da Land Art e das instalações, do furor das performances e do unanimidade neo-concreta. Nos anos 80 a coisa virou um pouco mais para a pintura, mas já nos 90, quando comecei a estudar arte, a coisa já tinha se tornado multi-disciplinar e experimental de novo. Os anos 90 nos trouxeram as telecomunicação celular, a Internet e todos os processos eletrônicos/numéricos de produção de imagens, que estão disponíveis no mundo todo, para artistas do mundo todo. Todos assistimos os mesmos filmes, os mesmos canais na Tv a cabo, vestimos as mesmas roupas, participamos das mesmas guerras e compartilhamos a mesma informação. Eu vivo e sou ativa nesse último turbilhão. É uma libertação não mais ter que nos preocupar em pensar se somos tropicalistas com pinturas ensolaradas ou determinar que há razão nos trópicos além dos tucanos e papagaios. O discurso é muito mais sobre como transpôr fronteiras virtuais ou reais, e como manter qualquer tipo de singularidade diante dessa massificação/achatamento cultural em escala global, entre outras questões.

Então, o que significa "arte brasileira" ou ser brasileiro hoje? Sim, temos bons e jovens artistas expondo mundo afora, mas será que a importância deles é só porque são brasileiros ou porque têm trabalho fresco e inusitado? Porque teria eu que ser Concreta quando isso me precede em 2 gerações? Porque tenho que fazer referências a movimentos que não vivi só para ter uma identificação com o contexto local? Como Greenberg falava, cada movimento na arte vem resolver as questões deixadas em aberto pela geração anterior. Correto, o diálogo com o passado é fundamental, pois a arte não só usca a essência do artista mas também a essência da própria arte. Por outro lado, os artistas de outras eras, medievais, renascentistas respondiam também a questões do presente, e por essa razão a arte é um excelente instrumento para entender o pensamento de cada época. Hoje, o mundo se mostra tão pequeno e tão grande, os problemas da política mundial tão graves, a internet tão cheia de possibilidades. E essa é a minha experiência. Só posso ter um compromisso verdadeiro é com a minha experiência, e a minha experiência é do tempo que estou vivendo agora. Arte é uma mistura de essência e experiência, impregnação e intuição, reverência aos mestres e crença na invencão futura. Mas, voltando a esse meu amigo, a arte não tem nada a ver com patriotismo.

Só posso dizer uma coisa: vou mandar essa pessoa que me falou isso praquele lugar. Pra bem longe do Brasil.

1 comment:

  1. Seus textos são refrecos pra minha cabeça de ex-futura-artista (ui) decepcionada.

    Disse tudo, tudo.

    Abração
    (de uma leitora viciada e tímida)

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